ARMANDO LISBOA
QUARTA-FEIRA, 22 DE MAIO DE 2002
José Lutzenberger

Vivemos um modelo de consumo suicida e sem futuro

 

Aos 73 anos, José Antônio Lutzenberger mantém-se como uma das maiores referências da luta ambientalista no país. Crítico feroz do desperdício e da "obsolescência planejada" dos produtos industriais, afirma que a sociedade de consumo é "suicida" porque vê o planeta como um "almoxarifado gratuito, de fundos infinitos". O erro básico, segundo Lutzenberger, está no pensamento que a economia tem de crescer sempre. "Nada pode crescer sempre, muito menos num espaço limitado." Reproduzimos na íntegra sua entrevista. Os subtítulos são nossos.

 

Estamos consumindo o planeta

Valor: Por que as empresas estão buscando processos produtivos mais limpos?

José Antônio Lutzenberger: Isso é conseqüência das lutas do passado recente. Em Porto Alegre, por exemplo, houve a luta contra a Borregaard, empresa norueguesa que, naquela época (em 1972), causava uma poluição muito agressiva. Depois surgiram sempre mais entidades de defesa da cidadania, as chamadas organizações não-governamentais, as ONGs, não só no Brasil mas no mundo inteiro.

Valor: Houve então uma conscientização, ainda que forçada, das empresas?

Lutzenberger: Nem sempre é consciência. Muito industrial ainda procura não fazer (investimentos em preservação). Só faz sob pressão. É que hoje temos órgãos oficiais que obrigam a fazer tratamento de efluentes. Isso é um movimento dos últimos 30 anos, mas ainda falta muito. O que estamos fazendo são remendos técnicos. Não basta tratamento de efluentes, carros mais limpos, reservas biológicas. Tudo isso é importante e fundamental, mas não suficiente. O modelo que estamos vivendo hoje, a chamada sociedade de consumo é um esquema suicida e sem futuro. Nós estamos consumindo o planeta.

O PIB é uma referência absurda

Valor: Como assim?

Lutzenberger: O simples dogma básico do pensamento predominante, que diz que uma economia tem de crescer sempre, já é um absurdo. Nada pode crescer sempre, muito menos num espaço limitado. Eu gostaria de saber como vão aumentar o território, as florestas, os lagos, os rios, os oceanos, a atmosfera.

Valor: Mas é possível parar de crescer?

Lutzenberger: O sistema não enxerga a bola de neve que consome o planeta porque a medida de crescimento é o Produto Interno Bruto, o PIB. Se uma empresa fizesse esse tipo de conta, que soma todos os faturamentos, mas também os custos, poderia estar quebrada sem saber. O absurdo é que o PIB soma até desastre para medir progresso.

Valor: Os custos ambientais não são levados em conta no cálculo econômico?

Lutzenberger: Veja o PIB brasileiro. Somamos as divisas que ganhamos na exportação de alumínio, aço e ferro. Tudo bem. Mas onde está descontado aquele grande buraco em Carajás, os mais de 100 mil quilômetros quadrados de floresta destruída ao longo da Ferrovia Carajás-São Luiz do Maranhão, os mais de 400 mil quilômetros quadrados de florestas de cerrado que já foram destruídas para fazer carvão vegetal? Os governos não fazem essa segunda parte da conta.

"O supermercado me dá nojo"

Valor: O sr. falou que as iniciativas ambientais das empresas são meros "remendos técnicos". O que mais pode ser feito?

Lutzenberger: Olhe o caso das latas de alumínio para refrigerante e cerveja. Isso é uma obscenidade. Uma lata de alumínio, das pequenas, para ser fabricada, consome 1.400 watts/hora, energia elétrica que uma lâmpada de 100 watts leva 14 horas para gastar. Tem cabimento gastar essa energia para 300 ml de bebida?

Valor: O produto em si, então, também é um dos problemas?

Lutzenberger: Claro. Por mais limpa que seja a fábrica que faz as latas ou a cervejaria que as utiliza, elas vão ser descartadas em algum lugar. Mesmo que sejam recicladas, o reaproveitamento é mínimo e vai consumir energia de novo. Quando eu vou ao supermercado hoje, as coisas começam a me dar nojo. Eu não vejo mais nada que não esteja em embalagens absurdas e exageradas. Antigamente, por exemplo, se comprava um tubinho de cola. E só. Hoje ele vem num papelão plastificado, com uma cúpula de plástico por cima e quando saio do supermercado ainda colocam em um saquinho de plástico. São dez vezes mais material para botar fora do que o quê eu comprei. Estamos arrasando o planeta com esse tipo de desperdício.

O consumidor é enganado

Valor: O sr. opta por produtos de menor impacto ambiental?

Lutzenberger: Sempre que possível, mas hoje tu entras num supermercado e não tens como sair de lá sem sacos e mais sacos de plástico. Dizem que o consumidor tem cada vez mais escolhas, mas isso é mentira. Temos cada vez menos opções diante da filosofia da obsolescência planejada, na qual as coisas são feitas para não durar.

A sociedade só pensa em descartar

Valor: Nos últimos anos tem havido um crescimento na demanda pelos seus serviços de consultoria?

Lutzenberger: Já que hoje há pressão governamental para que as empresas sejam as mais limpas possíveis, aumenta a necessidade de serviços nesse campo. Eu ganho minha vida com isso, consciente de que é apenas um passo, importante, mas, muito incompleto. Eu proponho ações descentralizadas e baratas, mas a tecnocracia em geral quer soluções megatecnológicas, altamente sofisticadas e caras.

Valor: Ou seja, isso se transformou em um novo e rentável segmento de negócio?

Lutzenberger: Eu inverti o paradigma básico da engenharia sanitária convencional, que parte de um postulado absurdo, o de se ver livre de coisas definidas como lixo, resíduo, esgoto, etc. Tudo isso é considerado fundamentalmente ruim, mas não existe coisa fundamentalmente ruim. O que chamamos de resíduo é uma coisa boa no lugar errado.

Valor: Os seus clientes entendem isso?

Lutzenberger: Claro, porque oferecemos soluções mais baratas. Se eu explico para um empresário que, em vez de gastar dez, ele pode gastar só um, ele faz a conta e vai optar pela solução barata.

"O pensamento econômico que predomina hoje é suicida"

Valor: As ONGs têm conseguido desempenhar um papel relevante na regulamentação ambiental?

Lutzenberger: Sem as ONGs, as coisas estariam muito piores. Os governos só agem quando vem pressão de baixo ou da grande tecnocracia, que hoje é quem predomina.

Valor: O ambientalista é um militante político?

Lutzenberger: Toda a ação social, toda a tecnologia é política porque ela significa poder. O verdadeiro ambientalismo tem de ir à questão filosófica. Temos de nos dar conta de que o pensamento econômico que predomina hoje é suicida. Não podemos continuar olhando o planeta como um almoxarifado gratuito, de fundos infinitos.

Celebrando a memória de José Lutzenberger, o IHU On-Line (Ano 2 - Nº 18 – 20 de maio de 2002) publicou a entrevista que concedeu ao jornal Valor, 24 de agosto de 2000 (in: boletim CEPAT Informa, nº. 65, setembro de 2000, p. 8-10).

 

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