OU O BRASIL ACABA COM
A SAÚVA OU.........?

José A. Lutzenberger
Especial para a EDITORA ABRIL
Dezembro de 1988

Talvez seja difícil determinar quem foi o autor da frase: Ou o Brasil acaba com a Saúva ou a Saúva acaba com o Brasil. Mas não é nada difícil dar-se conta de que se trata de uma afirmação equivocada.

As formigas cortadeiras existem há milhões de anos e são raras as espécies vegetais que elas não saibam atacar. A Saúva tanto corta folhas em árvores gigantescas, deixa chover os pedaços, recolhe no chão;  como corta arbustos, ervas e gramas. Já vi Saúva cortando aguapé no banhado. Quando ela ataca, sabe ser tremendamente eficiente, sabe desfolhar um pomar inteiro em uma noite. Ela têm, também, uma fantástica capacidade de reprodução. Em cada revoada nupcial são fecundadas centenas ou milhares de jovens rainhas, cada uma capaz de fundar novo povo. Para simplificar o trabalho, cada uma delas já leva, em sua cavidade bucal, material do bolor específico da espécie, para logo começar com a cultura. Além disso, uma colônia de formigas cortadeiras, uma vez estabelecida, a não ser que seja exterminada pelo Homem, tem longevidade indefinida, pode enfraquecer, mas se recupera, não precisa morrer. Como numa sociedade humana, morrem os indivíduos, mas não morre o povo. O que é mais, em nossas atuais paisagens, especialmente nas paisagens agrícolas e suburbanas, a Saúva já não tem inimigos naturais. O Tamanduá marcha para a extinção e os Tatus não vão muito atrás.

Com tanto potencial demolidor, como se explica que a Saúva já não acabou com o Brasil? Por que será que num capão isolado, onde ninguém a combate e onde ela não tem inimigos naturais, a formiga não acaba demolindo o capão? Por que ela se limita a cortar seletivamente esta ou aquela  árvore, arbusto ou erva, em determinados momentos, deixando-os em paz o resto do tempo?

Meu pequeno jardim, em pleno centro urbano de Porto Alegre, é uma selva pequena demais para que se possa falar de equilíbrio ecológico em termos de ecossistema.. Há mais de 30 anos observo a mesma colônia de Saúva. Ela flutua em tamanho e força, já sobreviveu até inundações. Está sempre presente. Entretanto, ela só me incomoda raras vezes, em condições especiais: ela gosta de cortar mudas novas, recém-transplantadas, ainda fracas e em luta por estabelecer-se ou ela corta brotação nova em plantas já estabelecidas. Isto acontece todos os anos em uma cicada que, aliás, está em situação precária, com falta de sol. Aprendi a proteger as plantas ameaçadas nestes momentos especiais. Por isso, não tenho a mínima intenção de acabar com a colônia. Gosto muito de observá-la. Como forma de vida fascinante, ciberneticamente sofisticada, me dá mais prazer do que incômodo.

Nas hortas orgânicas que assessoro, as formigas cortadeiras só constituem problema nos primeiros dois anos, enquanto ainda não conseguimos levar a microvida do solo à sua plenitude. A partir deste ponto, quando elas nos visitam, só fazem trabalho útil: eliminam plantas doentes e fracas. Atrevo-me a postular uma nova lei ecológica referente à Saúva. Nova, porque não tenho informação de já ter sido postulada por outro, mas é uma lei que vale desde que existem formigas cortadeiras: - o incômodo com a Saúva é inversamente proporcional ao nível de húmus no solo e à saúde das plantas.

Esta lei é bem evidente em pastos. Em pastos muito degradados, com solo compactado, esgotado e sem microvida; onde o capim já começa a dar lugar à ervas pioneiras, os formigueiros são fortes e numerosos, fazem grandes estragos. Se o pasto é forte e viçoso, o solo humoso e bem estruturado, a saúva acaba desaparecendo. Observando pastagens que têm manejo racional, com pasto são e produtivo, quando estes são  contíguos a pastos mal manejados e degradados, pode ver-se uma coisa incrível: a formiga respeita a cerca.

A atitude normal diante das cortadeiras, tanto da parte da maioria dos agricultores, como dos agrônomos, jardineiros e engenheiros florestais, é a de reagir a toda constatação de presença da formiga com o imediato combate a ela. A visão que prevalece é a de inimigo arbitrário, diabólico, a ser erradicado, se possível, ou pelo menos combatido com todos os meios à disposição. Mas aqueles poucos que têm o hábito da observação atenta e intensiva da Natureza, logo dão-se conta de que as formigas cortadeiras não são nada arbitrárias, discriminam muito entre as plantas que tocam e o momento em que as tocam. vejamos mais alguns exemplos:

Quando elas fazem suas lindas estradas - excelentes obras de engenharia, com túneis e elevadas, mas sem as agressivas e absurdas terraplenagens características de nossos engenheiros humanos - é comum verificar-se  que no fim de uma estrada está sendo cortada uma planta que junto ao início ou ao longo da estrada também tem, sem que seja molestada. Será que a formiga gosta de trabalhar debalde? Recentemente, num grande bosque de eucalipto, segui uma destas estradas, por uns setenta metros, até encontrar o arbusto que estava sendo cortado, uma tibouchina, da qual havia centenas de exemplares no bosque, muitos bem junto ao início ou ao longo da estrada. O que distinguia a vítima das demais era o fato de a agressão da formiga não ser o primeiro desastre para ela. No dia anterior uma motoniveladora, ao arrumar a estrada de manejo do bosque, com sua lâmina cortara a metade do sistema radicular do arbusto. A planta tinha ainda aparência sã, mas é claro, seu metabolismo tinha que estar alterado.

Em outro tipo de bosque comercial, nos plantios de acácia negra para produção de tanino, já fiz observação igualmente significativa. Nestes bosques, como nos de eucalipto, a formiga só é problema por ocasião dos plantios, nas mudas recém-transplantadas, ainda fracas. Nas plantações de acácia, quando se trata de replantio, após queima da galharia do plantio anterior, verifica-se muita germinação de semente de acácia. Acontece, então, que entre as linhas de mudas novas, transplantadas, encontram-se muitas mudinhas do mesmo tamanho, porém fracas. Os operários sempre notam, os agrônomos e engenheiros florestais quase nunca vêem: a Saúva corta as mudinhas transplantadas, não toca as francas. As francas não sofreram a agressão do transplante, estão mais fortes. A formiga prefere as plantas enfraquecidas.

Em uma de nossas hortas, estávamos em plena colheitas de repolho, um repolho são que nunca tivera praga. No canteiro havia repolho intacto, de pé, e havia, no chão, as folhas externas que se tira das cabeças colhidas. De fora da horta, de uns cinqüenta metros de distância, vinha um carreiro de saúva. Estavam trabalhando todo o canteiro. Não tocaram nenhum dos repolhos intactos, mas levaram todas as folhas caídas, já meio murchas. Não foi necessário combater a formiga. Após cortar a última folha murcha, voltou à macega de onde veio.

Também já observei, quando o colono derruba capoeira para fazer coivara, como a saúva, às pressas, corta a folhagem de arbustos derrubados, já semi-murchos, arbustos que antes da derrubada ela não tocava.

Muitas vezes, comendo laranja ou bergamota em pomar de cítricas, observei, pouco mais tarde, como as cascas caídas eram totalmente desmontadas e levadas pela cortadeira. Impressiona a rapidez com que encontra estas cascas, impressiona, mais ainda, por que não sobe as árvores e corta a casca das frutas no pé. Instrumento para isso não lhe falta. Assim como ela parece preferir plantas enfraquecidas, parece que ela também gosta de tecido vegetal que está morrendo.

Será por isso que, em experimento de laboratório, a Saúva se comporta de acordo com o clichê do inimigo arbitrário? Aquelas colônias de Saúvas mantidas em cativeiro, detrás de paredes de vidro, isoladas do mundo exterior, só recebem material vegetal que está murchando. Claro que cortam tudo!

Está claro que a Saúva não é inimiga arbitrária e não tem, nem pode ter, condições de acabar com o Brasil. Em seu próprio interesse de sobrevivência, não pode. Seria suicídio para ela. Por isso, a Natureza de tal maneira a programou que só pode cortar plantas enfraquecidas, doentes, desequilibradas, decrépitas. Assim sendo, ela tem futuro. Toda população, de seja qual for a espécie, animal ou vegetal, por melhor que se encontre enquadrada no ecossistema, sempre produz indivíduos marginais. Eliminando estes, ela contribui para a melhora da espécie, tem função importante no grande processo da Evolução Orgânica. Ela jamais descambará para uma orgia total, mas sempre sobreviverá, a menos que a burrice humana lhe ponha término. Se ela tanto nos incomoda em nossas lavouras e cultivos, é porque, com os métodos de produção que usamos, sabemos fazer tantas plantas desequilibradas.

A pesquisa que se costuma fazer com Saúva limita-se, quase sempre, à procura de venenos para matar a Saúva ou para matar o fungo que ela cultiva no composto que faz com o material vegetal que corta. Alguns também procuram inimigos naturais ou agentes patogênicos para a própria formiga ou para o fungo. Mas não conheço – talvez seja ignorância minha – pesquisa que leve em conta observações diretas como as acima relatadas. Esta teria que concentrar-se mais nos métodos de cultivo e no metabolismo das plantas a serem protegidas.

Mas, são raros, muito raros, os pesquisadores agrícolas modernos que, com a atitude do naturalista, gostem de observar a Natureza fora da estação experimental, além dos seus canteirinhos de análise estatística , que dificilmente consideram mais do que dois fatores variáveis por vez, ou fora das quatro paredes do laboratório e dos tubos de ensaio, dos recipientes de reprodução meristemática ou das estufas de ambiente controlado.  Alguns entre eles até consideram que a observação direta da natureza não é científica. Uma vez, na Alemanha, participando de discussão entre a indústria agroquímica e agrobiologistas, a indústria argumentava que não eram científicas as observações por nós apresentadas. Retruquei que há uma ciência considerada das mais exatas, a astronomia. Nesta só se observa, se mede, se compara, se raciocina. Não podemos mexer com o Sol, A Lua, as estrelas, não podemos trazê-los para as estações experimentais ou prendê-los em laboratórios.

Se quisermos resolver os problemas das pragas, parasitas e enfermidades em nossos cultivos e criações, sem envenenar o Planeta e destruir nossos solos, teremos que partir para enfoques completamente novos.

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