COMO MELHORAR
ECOLÓGICA E ECONOMICAMENTE
A PRODUÇÃO DE ÁLCOOL

Presidência da República
Secretário do Meio Ambiente
José A. Lutzenberger
I Encontro Internacional de Energia da Cana de Açúcar
29, 30 e 31 de agosto de 1990 em MACEIÓ - AL

Na situação atual de eminente nova e grave crise do petróleo devemos examinar e repensar as nossas opções energéticas. Entre estas, o álcool merece especial atenção. Se é verdade que a decisão inicial de partir para o álcool é questionável, pois o gargalo estava e está no diesel e não na gasolina, temos hoje milhões de carros a álcool em circulação e temos a produção com tecnologia avançada e pioneira. É verdade também que o programa do álcool causou imensos e sérios problemas ambientais e sociais, grande parte dos quais são agora irreversíveis, como foi a derrubada de floresta ainda intacta para o plantio de sempre mais cana e a marginalização de grande contingente humano, com todas as conseqüências que isto trouxe, mais devastação, garimpo, favelas, etc.

Entretanto, este programa, agora em crise, poderia, com pouco esforço adicional, ser consideravelmente melhorado, com diminuição e até inversão de impactos ambientais, aumento e melhoria da qualidade dos empregos, e contribuindo a uma importante revolução agronômica:

A visão reduccionista da agroquímica moderna tem levado nos campos de cana a uma prática profundamente perniciosa: a queima do canavial para falicitar a colheita. Além da poluição da fumaça que já levou a sérios transtornos e protestos, esta prática significa grande perda de fertilidade. Já foi demonstrado que, dos nutrientes contidos na matéria orgânica queimada, até 60% podem perder-se com a fumaça. Mas, matéria orgânica não é só nutrientes minerais. O nível de húmus, para uma fertilidade sustentável, é tão ou mais importante para o solo quanto estes nutrientes, pois a microvida do solo fixa nitrogênio do ar, evita lixiviação de nutrientes, libera nutrientes, especialmente micronutrientes, da matriz mineral do solo, evita erosão e mantém a umidade.

Vejamos agora um cenário algo diferente do atual:

  • O canavial não é queimado antes da colheita. O bóia-fria recebe correspondentemente mais por tonelada cortada, porque leva mais tempo para cortá-la e limpar as hastes. Haverá maior número de cortadores de cana. O trabalho será menos insalubre - desaparece a cinza e a fuligem no ar. As cidades vizinhas não terão mais o incômodo da fumaça e flocos de cinza. O solo não perdeu os nutrientes que estavam na folha seca.

  • A folha seca forma linda cobertura morta no solo. Com isto se evita o emprego de herbicidas. Uma diminuição considerável nos custos, eliminação de veneno no ambiente de trabalho e no ambiente natural. A cobertura morta, além de controlar a erva nativa, segura umidade no solo, lentamente se transforma em húmus, promovendo microvida.

  • O vinhoto (ou restilo) é aplicado sobre esta cobertura morta, não mais sobre o solo nú, causando acidificação e mesmo erosão. Detalhe importante: não mais serão aplicadas quantidades cavalares de vinhoto em parte da lavoura, só para dar sumiço ao mesmo, e nada no resto. O efeito mais importante do vinhoto não é, como gosta de calcular a agroquímica convencional, o aporte de nutrientes minerais, é a ativação da microvida no solo! Assim, cada hectare receberá quantidade de vinhoto correspondente apenas à quantidade de garapa que produziu. O vinhoto acelera a decomposição e humificação da folha seca. Sua gradual incorporação superficial melhora a estrutura física do solo, tornando-o mais grumoso e arejado ao mesmo tempo que lhe dá maior capacidade de retenção de água. Aumenta e diversifica-se a microvida do solo e surgem também organismos maiores, como as minhocas, que fazem um maravilhoso trabalho de fertilização do solo.
    Só com esta medida, o fazendeiro economiza consideráveis somas na eliminação de herbicidas e diminuição no emprego de adubos minerais comerciais. Economiza também nos agrotóxicos, pois, num solo mais são, diminui radicalmente a incidência de pragas e enfermidades na cana. A economia nos custos compensa amplamente a melhoria na condição do boia-fria.

  • Esta situação melhora ainda mais se o vinhoto não for aplicado crú, mas somente após passar por digestão anaeróbica metanogênica, ou seja, após produzir biogás (gás metano). Já temos alguns grandes engenhos que produzem biogás para suas fornalhas. Após digestão metanogênica, o vinhoto se transforma em um biofertilizante líquido de grande valor biológico - ele contribui não somente e quase instantaneamente para um aumento substancial na fertilidade do solo, mas, ele melhora também a higidez da planta, especialmente quando aplicado sobre a folha. O efeito fitossanitário é muito melhor que o da aplicação do vinhoto crú, sem falar da energia adicional para a usina. Além disso, o vinhoto fermentado pode ser usado em outras culturas como aplicação foliar diluída (2%) para controlar, entre outros, problemas como o da "vassoura de bruxa" no cacau.

  • O bagaço não queimado na usina será transformado em ração para o gado ou cabritos confinados. Já existem várias experiencias bem sucedidas neste sentido. Não somente o bagaço será utilizado para este fim, mas também as pontas verdes da cana, que hoje se perdem na queima do canavial. Com estas, melhora a qualidade da alimentação do gado, pois recebem suplemento verde.

  • a produção de carne se tornará atividade importante junto à usina de álcool ou açúcar, uma grande contribuição para a economia do país - melhora quantitativa e qualitativa no suprimento de alimento para a população e melhora no balanço comercial com exportação de carne.

  • Se o vinhoto, antes de sua aplicação no campo, for utilizado para a produção de biogás, sobrará mais bagaço, o que aumenta as vantagens que isto traz para o balanço energético, financeiro, fitossanitário, social e econômico.

  • Estas vantagens aumentam ainda mais se o confinamento dos animais for feito de tal forma que possa ser aproveitado o esterco. Este será levado ao biodigestor, junto com o vinhoto ou em operação separada. Em ambos os casos o biofertilizante irá para o campo, economizando fertilizante químico e, pela melhor higidez das plantas, agrotóxicos, que estão entre os insumos mais caros.
    Caso o esterco não passar por biodigestor, poderá ser compostado ou ser levado diretamente à lavoura.

  • Hoje, na maioria dos engenhos que tenho visitado, a cinza do bagaço que sobra nas fornalhas é desperdiçada. No entanto, é nela que estão os nutrientes minerais que estavam no bagaço, com exceção da parte que saiu na fumaça que, se a fornalha for eficiente, será muito pequena. Esta cinza, mesmo quando vitrificada pela alta temperatura, ou seja, se estiver transformada em escória insolúvel, pode e deve ser devolvida à lavoura. Basta para isso moê-la em moinho de martelo. Num solo vivo, rico em húmus e microvida, os nutrientes, mesmo deste tipo de cinza, se tornam rapidamente acessíveis à planta.

  • Uma consideração importante da qual a agronomia moderna costuma esquecer-se no caso da cana: tanto o açúcar quanto o álcool, só contém os elementos carbono (C), oxigênio (O) e hidrogênio (H). Estes elementos a planta retira do ar e da água, não precisam ser devolvidos ao solo em forma de adubo. Os elementos que a planta retira do solo, o fósforo (P), o potássio (K), o cálcio (Ca), o magnésio (Mg) e todos os microelementos estão na cinza, no vinhoto, na folha seca.

  • As reciclagens acima propostas devolvem estes elementos ao solo. Será mínima a necessidade de adubação química. Bastará uma eventual adubação com fosfatos naturais de produção nacional e baratos. Acima não mencionamos o nitrogênio. Isto porque um solo com microvida intensiva, resultado das práticas acima descritas, tem condições de fixar biologicamente o nitrogênio do qual necessita a cana para um desenvolvimento satisfatório e excelente fitossanidade. O nitrogênio fixado pela microvida é entregue lenta e continuamente à planta, não causa os desequilíbrios metabólicos originados pela aplicação maciça dos adubos nitrogenados sintéticos, uma das principais causas da suscetibilidade da planta às pragas e enfermidades. Caso no replantio, ou seja, nas lavouras novas, for plantado feijão entre as linhas, haverá mais uma melhora com enriquecimento do solo com nitrogênio e melhora de estrutura orgânica, sem falar da renda adicional com o feijão.

Quanto mais intensiva for a reciclagem, maior será a produtividade, será a qualidade, será a fitossanidade - diminuirão os impactos ambientais, aumentará a quantidade e a qualidade do emprego. Um engenho de cana ou açúcar propiciará mais emprego, melhor pago e menos sazonal, o esquema como um todo será permanentemente sustentável, o que não se pode dizer da maioria dos esquemas atuais.

Aumentaremos, assim, a eficiência e economicidade dos plantios existentes, jamais destruiremos o que sobra de bosque, banhados e outros ecossistemas nativos ainda intactos. O álcool poderá tornar-se fator de recuperação natural e social, será subproduto de uma maciça produção de carne.

 

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