CLARISSI
(ISSI)
QUINTA-FEIRA, 16 DE MAIO DE 2002
José Lutzenberger
A ORFANDADE DE GAIA
Passei
anos alimentando sentimentos ambíguos em relação ao alemão casmurro, que
parecia ter dentes só pra rosnar, vivia se preocupando com bichos e plantas
cujos nomes eu sequer desconfiava e achava um lixo a maioria das coisas que eu
consumia, ao mesmo tempo em que admirava sua incansável teimosia em jogar areia
nos planos de quem se preparava para tornar nosso ar, em todos os sentidos,
irrespirável.
A
Terra foi dormir conturbada, como sempre, e Gaia acordou triste, como nunca.
Usualmente frágil por depender do desenvolvimento da consciência, principal
alvo dos que destroem o planeta, Gaia amanheceu chorando porque perdeu um de
seus mais aguerridos defensores. Estes, que ainda são poucos frente à
soldadesca que faz do planeta um sofrido campo de combate, levam um baque quando
perdem qualquer um dos seus, mas quando esse lutador é da estirpe, valia e
estatura de José Lutzenberger, aí a coisa fica feia mesmo.
Passei anos alimentando sentimentos ambíguos em relação ao alemão casmurro,
que parecia ter dentes só pra rosnar, vivia se preocupando com bichos e plantas
cujos nomes eu sequer desconfiava e achava um lixo a maioria das coisas que eu
consumia, ao mesmo tempo em que admirava sua incansável teimosia em jogar areia
nos planos de quem se preparava para tornar nosso ar, em todos os sentidos,
irrespirável.
Humanista confessa, não entendia como alguém podia se preocupar mais com
lagartixas do que com o bicho homem, ente tão sujeito à extinção quanto o
mico leão dourado, não em termos de existência, mas sim de essência, o que
pra mim dá mais ou menos no mesmo.
Até que um dia conheci o cara, num jantar promovido por amigo tão raro e
especial quanto ele, além de tudo Franco, e que resolveu acabar com a birra na
base do encontro. Éramos cinco à mesa, eu como a única mulher, uma razão a
mais para me colocar no ataque, já que não podia perder pro macharedo a parada
nem aceitar ser substituída por abóbora, que pra Cinderela não me presto.
Ademais, a idéia de um planeta verde não me atraía porque não saberia abrir
mão da coca- cola, dos cigarros, dos congelados e dos enlatados que fazem a
delícia dos solteiros contumazes como eu.
E não é que, argumento por argumento, paixão por paixão, seu Lutz me calou a
boca? Quem me conhece, sabe que isso é proeza da boa, contudo, não havia
razão que não contrapusesse com números, dados, estatísticas e informações
extraídas de sua prodigiosa memória e conhecimento amplo, profundo, de tudo
que nos diz respeito, sendo o nós aí o conjunto da vida, inclusive humana. Ao
contrário do que supunha, ele não relegava o ser humano a um papel
secundário, e sim a um agente importante, porém não único, do que denominava
“princípio vital”.
Segundo Lutzemberger, ou se respeita o direito à vida de tudo que nos cerca,
sem predominância de uma espécie sobre as demais, ou todas, literalmente
todas, vamos pro pau, e não sobrará quem conte, ou faça, a história. Mais: o
homem não é um mero agente econômico, a despeito de ser essencial no
desenvolvimento da natureza como um todo. Dizia isso com os olhos brilhando, os
gestos e a voz cheios de garra, como se fosse a primeira, e não a milionésima
vez que expusesse suas convicções a uma platéia de teimosos e ignorantes,
como era o nosso caso. O interessante é que, ao mesmo tempo em que exibia uma
visão pessimista do futuro, demonstrava que esta visão lhe servia de impulso
para agir e não de pretexto para desistir, como boa parte da nossa tribo faz,
bastando para isso casar, arranjar emprego e parir, pelo que alegam por aí,
desculpa que sempre me deixou fula da vida, pois justamente quem botou pra criar
é quem tem que se preocupar com o que vai dar, e não cruzar os braços e
mandar o mundo às favas.
Éramos cinco à mesa, provavelmente dizendo coisas que ele ouviu milhares de
vezes, e que foram rebatidas ponto por ponto como se valêssemos a pena para
quem, como ele, tinha uma agenda de deixar qualquer um de nós, 30 ou 40 anos
mais jovens, exaustos. Foi então que entendi porque o Franco havia se tornado
seu fiel escudeiro, porque falava com tanta admiração e amor daquele homem
velho, feio, compenetrado e sério, que quase nunca ria e tinha razões de sobra
pra chorar mas as utilizava para brigar.
Ao final da noite, cansada de combater o imbatível, rendi-me à evidência: o
cara era um bravo, um herói moderno, que se aliava aos moinhos de vento porque
sabia identificar seus inimigos tão bem quanto seus amigos, proeza para poucos,
claro. Minha rendição só não foi total porque era proporcional à minha
paixão pelos vícios e implicância com insetos de qualquer natureza,
tornando-me incapaz de olhar para eles com cara de bons amigos e de comer
agrião com ar jubiloso se uma picanha estiver por perto.
Além do mais, persistiam alguns bloqueios ideológicos por conta de sua postura
anti-reforma agrária, o que me dava nos nervos, e por ter sido ministro do
Collor e coisas que tais. Porcarias, na verdade, que não têm importância se
levada em conta sua incrível trajetória, que faz com que o mundo seja melhor,
ou bem menos pior, com caras como ele vivos, e é por isso que hoje ficamos mais
pobres, sozinhos e tristes. A orfandade só não é maior porque ele sabia
plantar direitinho e aglutinou gente um bocado valiosa, mundo a fora, capaz de
dar seguimento ao seu trabalho, de não permitir que o futuro vire tempo do
passado.
Tchau, Lutz, vai plantar batatas no céu, que as daqui Clara Brandão há de
cuidar. Mas isso é outra história, outra heroína, outro exemplo, que fica pra
próxima. Descanse em paz, que aqui a guerra continua. Por enquanto.
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