Carta aos amigos da Praia do Pinho

José A. Lutzenberger
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Brasil
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Porto Alegre, 4 de março de 1997.

 

Aos amigos e associados da Praia do Pinho:

 

É a terceira vez (de 22 a 31.01.1997) que venho passar uma temporada neste lugar privilegiado de grande beleza. Por isso, preocupa-me seu futuro.

Leio no "Código de ética naturista":

§ 9 Contribuir para o desenvolvimento da consciência ecológica, das práticas conservacionistas e do respeito à biodiversidade.

Que significa isto realmente? Só pode significar que, como naturistas, devemos comportar-nos de tal maneira que toda nossa interação com o mundo vivo venha a significar uma integração que complemente, não destrua o que a Natureza nos apresenta.

Neste contexto, é realmente exemplar e pioneiro no Brasil a maneira como foi instalado este Centro, com construções integradas na floresta, a ponto de, para quem olhar desde a praia, ele ser praticamente invisível. O que normalmente se vê em nosso país é todo o contrário: derrubada, terraplenagem brutal, alteração total da paisagem com eliminação quase total dos complexos florísticos nativos. Quando se fazem jardins, eles são artificiais com desenhos geométricos, com muito concreto e predominam as espécies exóticas.

Entretanto, verifico que também aqui acontecem ainda vários estragos que seriam facilmente evitáveis e que, se continuarem a ser perpetrados, levarão inevitavelmente a uma degradação irreversível.

As práticas a que me refiro são resultado da ignorância que prevalece em nossa atual cultura. A grande maioria das pessoas não tem intimidade com a Natureza, não a sentem, não procuram entendê-la. Mas nós naturistas temos que tornar-nos exemplos. É nos pequenos detalhes que se demonstra a integração do ser humano na Natureza.

  1. Verifico que no entorno de muitas das edificações, felizmente não de todas, e de alguns dos espaços para instalação de barracas prevalece o hábito de varrer e retirar as folhas secas. Ora, folha seca não é lixo, ela é a vida do bosque. O tapete de folhas secas que naturalmente se forma debaixo das árvores tem múltiplas e vitais funções para a sobrevivência da floresta:
    • Protege os organismos vivos que habitam o solo e que são fundamentais para sua fertilidade. Num solo sadio e fértil vivem milhares de seres das mais diversas espécies: entre eles insetos, pequenos crustáceos, moluscos e vermes, como a minhoca, em alguns casos até pequenos anfíbios, répteis e mamíferos. Com seu trabalho, que consiste em decompor as folhas e galhos mortos; de se consumirem uns aos outros; de decompor uns os cadáveres dos outros; de enriquecer o solo com seus detritos e excrementos, eles mantém o solo em estrutura aberta, porosa, portanto arejado como uma esponja. Além destes animais, um solo assim abriga fungos, algas e bactérias que ajudam na decomposição final da matéria orgânica. Esta decomposição final devolve ao solo os nutrientes minerais que as ervas, arbustos e árvores dele retiraram: o nitrogênio, fósforo, potássio, cálcio, magnésio e muitos outros, até os microelementos essenciais para a saúde de todos os organismos vivos, inclusive nós humanos. Quanto mais intensiva a vida do solo, maior sua fertilidade, mais sadias estarão as plantas e todos os demais seres que delas se alimentam.

      Portanto, quando varremos e levamos embora as folhas secas interrompemos a reciclagem vital para a sobrevivência de todo o ecossistema. Isto é prejudicial para o bosque.

    • Além disso, o solo nu exposto à chuva fica sujeito à erosão e desestruturação, especialmente nas áreas inclinadas. As torrentes levam a terra fértil, acaba ficando só o subsolo sem vida e, na fase final, se o processo continuar sem freio, a rocha nua. O solo perde sua capacidade de retenção de água. Onde permanece um bom tapete de folhas e galharia morta em todas as fases de decomposição e mineralização e com todo aquele complexo de seres animais e outros acima mencionados, a água da chuva penetra fácil e profundamente, só escorrendo superficialmente por ocasião de enxurradas extremamente fortes. Ela acaba saíndo dias, semanas e mesmo meses mais tarde, nas vertentes. Por isso os arroios só secam após períodos de estiagem extrema. Onde o solo está nu, a chuva mal consegue molhá-lo, a água se escorre rapidamente. Assim, nos desertos com seus solos nus, os arroios e rios, em geral, estão secos, mas quando chove, os leitos dos cursos d'água se transformam logo em torrentes violentas que podem ter conseqüências catastróficas. Pouco tempo depois voltam a secar.

      Entre as casas da Praia do Pinho, nos lugares onde a folha seca vem sendo regularmente varrida e retirada, já pode observar-se muito bem como é violenta a erosão, com perda irreversível de solo. Basta observar as raízes, algumas bem grandes, que afloram, às vezes até 20 ou mais centímetros fora da terra. Quando elas se formaram, elas estavam dentro da camada fértil da terra que agora não existe mais porque foi levada pela erosão. Nos lugares onde isto ocorre, o observador atento pode ver como muitas das árvores já estão fracas e doentes, com pontas de galhos secas no topo. Onde foram feitos cortes profundos, por exemplo, junto à estradinha central, pode se ver como é pouco profundo o horizonte de terra vegetal e como logo abaixo vem subsolo e saibro estéril.

      Portanto, deveria ser terminantemente proibido varrer as folhas, a não ser nos caminhos pavimentados ou nas lajes de pedra e canchas. Aliás, é bom caminhar sobre um tapete de folha seca, melhor ainda em dias de chuva. Ao contrário de solo nu ele não suja sapatos.

  2. Nos gramados, se quisermos manter sua higidez não devemos levar embora o corte da tosa. É preferível tosar mais freqüentemente, as pontas mais curtas penetrarão mais fácil e acabam sendo adubo. Quando o resultado da tosa ou folhas secas que caem no gramado é volumoso demais e é retirado, convém levá-lo a um composto e, mais tarde, trazer de lá o terriço para adubar a grama.

  3. Lixo: Atualmente o lixo está sendo entregue à coleta pública. Ora, se quisermos ser exemplo ecológico também neste ponto seria muito fácil organizar esquema adequado. A coleta deverá ser seletiva e o material orgânico compostado para ser usado como adubo. Se em cada casa, cada barraca e em cada lugar onde aparecer, o lixo for logo separado em

    • material orgânico biodegradável (tudo o que apodrece: restos de comida, de fruta, papel sujo, folhas, flores, cascas de amendoim e nozes, etc., etc...
    • papel limpo - jornais, revistas, livros, cartolinas, papelão, etc...
    • plásticos, vidros, metais
    • as pilhas devem ser juntadas à parte, especialmente as pequenas em forma de pastilhas, que quase sempre contêm mercúrio.

    ...o problema já estará praticamente resolvido.

    O material orgânico será compostado, os materiais recicláveis, os papéis, plásticos e vidro, poderão ser encaminhados diretamente aos catadores, que com eles ganham sua vida.

    Como fazer o composto? Podemos decidir fazer um só composto para todo o centro ou um para cada casa ou levar parte para o composto central e algumas casas fazerem seu próprio composto, conforme a inclinação do proprietário ou morador.

    Pouca gente se dá conta como é interessante fazer e observar um composto - ver os restos orgânicos se transformarem em terriço. A maneira mais simples é fazer sobre o solo um cubo de tijolo solto, 0,50-0,70 m de altura, em forma de quadrado com paredes de meio metro a um metro de lado, conforme a quantidade de lixo que se espera ter. Todos os dias ali se atira o lixo orgânico. A medida que ele vai acumulando, ele também se decompõe e baixa em altura. Se forem introduzidas minhocas o processo se acelera.

    Conforme a quantidade inicial e os aportes contínuos, pode levar mais de ano para o nível do terriço maduro que se acumula no fundo chegar até ao topo. Neste momento, convém construir uma caixa idêntica junto à velha, com parede comum entre as duas. Deixa-se maturar mais alguns meses. As minhocas que ali nascem migrarão então para o novo composto. Colhe-se então o terriço maduro que é uma terra bem preta para uso em jardins, no gramado, em floreiras, etc... Quando o novo composto chega à mesma situação, volta-se a trabalhar na primeira caixa.

  4. Um problema ecológico sumamente grave e que até a maioria das pessoas com preocupação ambiental desconhece ou não leva em conta é o do extermínio sistemático que hoje se faz dos insetos noturnos.

    Infelizmente, não sabemos porque, quase todos os insetos noturnos se sentem atraídos pela luz elétrica. As lâmpadas ao ar livre transformam-se assim em armadilhas mortais para eles. No Centro são poucas as luzes ao ar livre, mas tenho notado que algumas delas tem se mantido acesas toda a noite, sem necessidade. O leigo não tem noção do desastre ecológico que isto representa. A biodiversidade dos insetos noturnos era muito maior que a dos diurnos. Entre eles, encontram-se também muitos dos predadores naturais das pragas de nossas lavouras. Portanto sua sobrevivência tem, inclusive, importância econômica.

    Devemos, por isso, minimizar a iluminação externa e, onde isto não for possível, usar os bulbos amarelos especiais que não atraem insetos.

    É interessante notar que aqueles insetos que nos molestam, o mosquito por exemplo, não são atraídos pela luz elétrica, nada sofrem...

  5. Pude observar um outro problema de fácil solução. Quando numa casa janelas relativamente grandes se encontram alinhadas de modo que olhando de frente para a primeira se vê o bosque atrás da outra, certos pássaros acham que podem atravessar a casa. Se uma das duas janelas está fechada eles se espatifam no vidro. Observei vários lindos beija-flores morrerem em choque com uma de nossas janelas.

    Este problema tem fácil solução, basta desenhar ou colar no vidro a silhueta de um pássaro predador, um gavião, p.ex.

Espero que este meu trabalho seja de valor para o Centro e peço seja amplamente divulgado entre os sócios e freqüentadores da Praia do Pinho.

 

Amistosamente,

José A. Lutzenberger

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