Entre Kyoto e a Lua

 

Quando em 1969, o Homem pisou pela primeira vez na lua, o fez buscando conhecer de perto esse pequeno satélite branco, que refletindo tenuemente a luz solar sobre nossas noites, acolhe e inspira os namorados a expressar o lado mais passional da vida. Tivesse a lua uma consciência, poderíamos então desconfiar de que sua pálida face está senão  espreitando-nos ciumenta, na esperança de contagiar-se com tanta vitalidade terrestre.

 

A maior descoberta dessa aventura austronáutica, não foi tanto a lua, como pensávamos, mas, sim, a Terra vista do além, em todo o seu conjunto, numa única mirada! Uma terra de muitas cores, de muitos jeitos e trejeitos, envolta por um véu branco esvoaçante a rodopiar inocentemente no imenso vazio universal. Uma terra VIVA, estimulada pelo sol e inspirada pela lua! 

 

Pois, ao deixar sua primeira pegada na lua, o Homem deu o primeiro passo para desbravar a si mesmo, identificando-se como parte da Terra e a Terra como uma extensão de si mesmo.  Sua auto-percepção deu um salto cósmico e a vida foi tomada de uma dimensão astronômica.

 

Mas, como sabemos, emoções são volúveis e a rotina mundana permeada de pequenos interesses, foca nossas atenções dispersando-nos da percepção de conjunto. E, dia a dia, seguimos sugando a força vital terrestre, desencadeando alterações cada vez mais comprometedoras nos sistemas de auto-regulação hídrica, geológica e climática que sustentam nossas aspirações.

 

A ratificação do Protocolo de Kyoto 36 anos depois de nossa experiência lunar é um novo marco nessa história. As metas oficiais de redução dos gases de efeito estufa, os componentes que alteram a leveza de nosso manto, superaquecendo e desestabilizando nossa jornada, são evidentemente muito modestas: propomo-nos a uma redução global de 2%[1]  até 2012, em relação ao patamar de 1990, quando estudos do IPCC[2] demonstraram que deveríamos buscar a redução de 60% desses gases, se quiséssemos voltar às concentrações naturais, vigentes antes da era industrial.

 

Nos últimos 15 anos, entretanto, continuamos investindo na queima dos combustíveis fósseis, na geração desenfreada de lixo descartável, em sistemas agrícolas devastadores para a biodiversidade e para a fertilidade de nossos solos, entre outras práticas incoerentes, que resultaram num sensível aumento das emissões atmosféricas.

 

Novamente, temos de admitir nossa incompetência em traduzir emoções genuínas em práticas consistentes de preservação da vida. 

Ou será que nem todos fomos sensibilizados pela inveja da lua?

 

Lara Lutzenberger

Fundação Gaia

18/02/2005

 

* Publicado no Jornal do Comércio em 02 e 09 de março de 2005

[1] Somente os países em desenvolvimento devem buscar a redução de 5,2% das emissões de gases de efeito estufa, o que no conjunto total das nações representa um índice de ~2%.

[2] Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que em suas pesquisas científicas orienta as discussões no âmbito da Convenção Quadro das Mudanças Climáticas, da qual decorre o Procolo de Kyoto. 

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