Sítios verdadeiramente Sagrados

Há alguns anos encontrei uma moça que retornava de uma temporada em uma aldeia indígena. Não aquelas de beira de estrada, já fortemente influenciadas por nosso presunçoso afã civilizatório. Não, era daquelas que pensamos subsistir apenas no mundo imaginário de nossa infância, em meio à porção mais selvagem da já selvagem floresta amazônica.

Mais ou menos na mesma época, conheci Ailton Krenak, uma das principais lideranças indígenas do Povo Krenak, que se distribui pelos estados brasileiros de São Paulo, Minas Gerais e Bahia, numa região agraciada por serras e riachos.

Em ambas situações, o que me marcou foi a percepção de uma paz interior e alegria serena como praticamente não a conhecemos em nossa sociedade. Pois, com limitações óbvias de conforto e facilidade, membros dessas comunidades irradiam um bem estar autêntico e envolvente. Perguntei-me, de onde advém essa energia? Parece-nos quase um milagre, que tendo de esquivar-se de cobras e aranhas ocultas entre espinhos e nuvens de mosquitos na densidade da mata, possa haver alguma satisfação, tranqüilidade e bem-estar.

Conversando longamente com Ailton, em tempo indígena – sim, porque índio não tem pressa, seu tempo é sabiamente orientado pelo ritmo cósmico; talvez eu tenha chegado mais perto dessa compreensão!

Praticamente não existe povo indígena, seja ele qual for, sem sítio sagrado. O sítio sagrado está associado a seu local de origem, à região onde habitavam os seus primeiros ancestrais.

Aliás a noção de ancestralidade também difere entre nossa percepção e à indígena. Enquanto ficamos no nível de avós, eventualmente, bisa e tátara, eles remontam e cultuam tantas gerações atrás que chegam a passar dias e dias, e mais dias, resgatando, sem pausa, suas histórias em rodadas comunitárias.

Mas, voltando ao sítio sagrado, este confere a identidade e liga de um povo. Como referência maior de suas raízes, ele ambienta e ilustra uma narrativa feita de capítulos seculares. Em uma riqueza surreal de detalhes cósmicos (imagine, detalhes cósmicos; chega a soar paradoxal!) essa narrativa dita graciosamente as regras de convivência entre seus membros, entre estes e a grande comunidade terrestre e, finalmente, com o universo. Através do culto aos sítios sagrados, narrativas e mitos transmitidos de geração em geração e reelaborados continuamente, comunicam, com drama e humor, a essência das montanhas, dos vales, dos riachos, dos seres de uma região e estabelecem um vínculo afetivo que orienta espontaneamente as ações humanas pelo bem comum. Com uma linguagem fantasiosa, mas partindo de uma referência paisagística real, traduz-se a grandiosidade da teia de relações que constitui a Vida em sua dimensão maior. A paisagem, assim como seus componentes humanos e não humanos, deixam de ser recursos a serem admirados ou explorados, e passam a ter significado e valor inerentes e, por decorrência, tornam-se passíveis de respeito e até veneração. Nessa perspectiva, as ações humanas são avaliadas e concebidas de forma a não comprometer o todo. O sacrifício de qualquer elemento é acompanhado por rituais que limitam o seu impacto. Estabelecem-se ritos, que nutrem uma postura de reciprocidade, em que as ações são ditadas senão pela sazonalidade e dinâmica dos ciclos ecológicos de cada lugar, configurando um jeito simples, mas significativo de viver. Floresce em cada um a agradável sensação de pertencimento a algo maior do que si mesmo; uma sensação de transcendência que engrandece a vida individual, tornando a bela e preciosa pelo que é, não pelo que a transformamos. Respirar o aroma fresco da natureza se torna muito mais gratificante do que conquistar o último modelo de Ipod.

Imagino que seja daí que advém aquele espírito que tanto me tocou!

Imagino, também, que Ailton tenha se apercebido disso quando, em 1987, fez do resgate do Tarú Andek, sua missão de vida. Tarú Andek é uma celebração anual que reúne o Povo Krenak para prática de rituais no conjunto de seus sítios sagrados.  Mesmo já em parte miscigenados em casamentos inter-étnicos, ou dispersos - o próprio Ailton mora com sua esposa  Krenak e dois filhos pequenos na cidade de Belo Horizonte, onde é Assessor para Assuntos Indígenas do Governador de Minas Gerais; a prática reforçou a união do grupo, permitiu o resgate de sua cultura e valores mais nobres, assim como passou a mobilizá-los pela preservação e reconstituição do que são e do seu mundo.

Estendendo o convite a tribos de outros povos indígenas, como os Suruí de Rondônia e os Yawanawá do Acre, contagiaram-se mutuamente pelo prazer do retorno às origens, conscientes e orgulhosos de seu valor.  Iniciativas semelhantes passaram a ocorrer, espalhando cantos  e rituais indígenas pelo continente que, paulatinamente, vão culminando na preservação de sítios sagrados, suas paisagens e hábitos culturais.

O povo Krenak constitui-se hoje de apenas cerca de 450 indivíduos, menos do que o número médio de moradores de um único bairro de cidade grande. Para a grande maioria de nós, integrados numa sociedade global, de raízes e mitos perdidos, o conceito de sítio sagrado pode parecer até infantil, motivo para história de criança. E, se analisarmos bem, não o deixa de ser. Os integrantes de uma tribo, inserem-se desde o ventre nesse enredo. Mas, diferentemente de uma estória infantil qualquer, trata-se da grande história da humanidade e de reais perspectivas de fazer da nossa trajetória uma trajetória pelo bem comum, pelo equilíbrio planetário e pela nossa felicidade mais genuína.

E, em tempos de aquecimento global, cabe também inspirar-se na saudação que Ailton e seu povo cantam e dançam ao sol diariamente: tepó Itxá, tepó ere-rré - o sol vem quente, o sol vem nos abençoar! 

Lara Lutzenberger
março de 2009

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