PREFÁCIO
OUR STOLEN FUTURE
José A. Lutzenberger
23 de julho de 1997

Este livro deve ser visto como uma continuação aprofundada e atualizada do alerta de Rachel Carson que, em 1962, com seu livro "Primavera Silenciosa", foi um marco de repercussão planetária para a consciência ecológica e que desencadeou o movimento das entidades não governamentais de luta ambiental. Agradecemos à Editora LP&M ter-nos dado a oportunidade de tornar conhecido no Brasil este novo alerta. Faremos o possível para que chegue às mãos daqueles que têm força, poder e vontade de agir.

De meu conhecimento, em nenhum outro país do mundo houve movimentação tão intensiva por parte, justamente, de jovens agrônomos em favor de um controle efetivo dos agrotóxicos. Forma aprovadas excelentes leis estaduais que, entre outras medidas importantes, obrigam ao receituário agrícola. Quase todas estas leis foram aprovadas com imensa maioria, algumas com unanimidade de votos. Logo, por ação do lobby da agroquímica, o Tribunal Supremo sentenciou que elas eram inconstitucionais. Mas, quando houve ação direta por parte do então ministro federal da agricultura, apoiando-se na autonomia que o Tribunal lhe dera, ele foi logo sucedido por outro ministro que, como um de seus primeiros atos administrativos, anulou a medida. Conseguimos, mais adiante, excelente controle na nova Constituição Federal. Entretanto, recentemente, em nome de uma necessária uniformação para o MERCOSUL, foi decidido desconsiderar a Constituição em vigor (!) e aceitar como norma a legislação argentina... A lei argentina não controla nada. Lá praticamente não houve conscientização e luta diante dos perigos dos agrotóxicos. Um quarto de século de luta de defesa da cidadania anulado por um canetaço de burocrata.(

Espero que este livro venha a ter o máximo de circulação para que contribua a desencadear a nova movimentação necessária. Que não aconteça com ele o que aconteceu com a edição brasileira do livro de Carson que logo desapareceu de circulação... Ou o que aconteceu com o livro de Arthur Primavesi "A Biocenose do Solo" que teve destino igualmente misterioso.

Diante do alcance dos fatos, resolvi dar uma contribuição que me parece imprescindível. Não para somar, a soma já é impressionante, mas para complementar. Tanto o livro de Carson como este apontam os desastres, ilustrando com um mundo de detalhes ignorados pelo público e mal conhecidos pelos técnicos. Diante da visão que hoje predomina, de que bastam tecnologias sempre novas como panacéia para a solução de todos os nossos problemas, muitos, especialmente os que têm poder de decisão, chegarão à conclusão que só precisamos de remendos técnicos, tais como mais cuidado, mais preocupação na aplicação ou simples troca de produtos para substâncias menos perigosas. No entanto, o que precisamos questionar é a tecnologia dos agrotóxicos em sí. Daí, minha explicitação e crítica do paradigma que predomina na agro-química atual!

Quando eu estudava agronomia nos anos quarenta, a pesquisa agrícola estava quase exclusivamente direcionada para os métodos ecológicos. Não se falava em ecologia, mas se pensava mais ecologicamente. Grandes progressos se faziam, complementando cientificamente e levando adiante a sabedoria milenar do camponês. Mas, a partir dos anos sessenta, houve um redirecionamento brutal. A industria conseguiu cooptar, ideologicamente, quando não por outros meios, escolas, pesquisa, extensão agrícola, bancos, legislação.

Poucos conseguem lembrar-se que o redirecionamente não foi exigido pela agricultura, nem pelos grandes cientistas agrícolas da época, foi imposta pela indústria que precisava encontrar mercados para os novos processos que tinha desenvolvido durante o esforço bélico. O complexo industrial dos adubos químicos foi desencadeado depois que a Alemanha conseguiu guerrear de 1914 a 1918 apesar do bloqueio aliado que lhe cortara os suprimentos de salitre do Chile, indispensável para fabricação dos explosivos. O processo Haber-Bosch permitiu a síntese do amoníaco a partir do nitrogênio do ar. Fico pensando como estaria o Mundo hoje sem este processo. Não teria havido Tratado de Versailles, não teria havido Hitler...!

A produção industrial maciça dos agrotóxicos foi desencadeada após a Segunda Guerra Mundial a partir da procura de gases para matar gente. Eles não chegaram a ser empregados, mas, em novas formulações, é o caso dos ésteres do ácido fosfórico, foram então oferecidos à agricultura para matar insetos. O DDT era curiosidade de laboratório. Quando Müller descobriu que matava insetos, sem, aparentemente, ser tóxico para humanos, passou a ser usado em grande escala na guerra do Pacífico para proteger os soldados americanos da malária. Os compostos do grupo 2,4-D e 2,4,5-T foram desenvolvidos para destruir as colheitas dos japoneses por pulverização aérea. A bomba atômica se antecipou, os japoneses assinaram o armistício, os transportes de grandes cargas voltaram, as substâncias foram reformuladas para matar inços na agricultura.

O argumento constantemente apresentado que diz, serem os modernos métodos de produção agrícola e pecuária indispensáveis para a solução do problema da fome não procedem. Simplesmente não é verdade que em países modernos como os da América do Norte e da Europa, no Japão e outros, bastam hoje apenas dois por cento, ou menos, da população para alimentar toda a população, enquanto que na virada do século ainda eram sessenta e em 1945 algo mais de quarenta. A comparação é incompleta, portanto falaciosa.

Em termos de visão sistêmica da economia como um todo, o camponês tradicional, em grande parte o latifúndio também, constituíam esquema autárquico de produção, elaboração e distribuição de alimentos. O esquema produzia seus próprios insumos: adubos em forma de esterco, composto, adubação verde, rotação de cultivos, consorciações; a energia era tração animal; a quase totalidade dos implementos era fabricada na aldeia por artesãos que constavam também como população rural. Aquela conta incluía também os pequenos moinhos, laticínios, cantinas, abatedouros, fabricação de fiambres e muita coisa mais. O camponês entregava a maior parte de seus produtos diretamente ao consumidor no mercado semanal. Daí os nomes que, na língua portuguesa, ficaram para os dias da semana.

Mas, em termos econômicos globais, o que é o agricultor moderno, aquele que constitui menos de dois por cento da população? Ele é uma peça minúscula numa imensa estrutura tecno-burocrático-financeiro-administrativa e legislativa que começa nos campos de petróleo e refinarias, atravessa a indústria química, indústria de máquinas, bancos, manipulação industrial de alimentos até os supermercados e centros comerciais, universidades, pesquisa, extensão agrícola e uma gigantesca movimentação de transportes, social e ecologicamente absurda, mais uma desenfreada indústria de embalagens que a cada dia torna mais intratável o problema do lixo e para cuja solução, além dos imensos lixões, já estão sendo construidos gigantescos incineradores.

Para uma comparação real teríamos que somar todas as horas de trabalho em todos estes esquemas quando estão direta ou indiretamente ligadas à produção e distribuição de alimentos. Isto inclui até parte das horas de trabalho de quem nada tem a ver com agricultura, mas que contribui com seus impostos para as subvenções, sem as quais não funciona a agricultura moderna, incluindo os bilhões que se gastam na Comunidade Européia, para destruir alimento...

A conta completa nos mostra que não houve aumento de produtividade em termos de trabalho humano, houve, isto sim, remanejamento de tarefas. Nos raros casos em que houve real aumento de produtividade por hectare, medido apenas em quilos por unidade de superfície, não estão sendo contabilizados os custos sociais: marginalização de centenas de milhões de camponeses no Mundo e não são contabilizados os custos ecológicos: devastação de ecossistemas, perda de biodiversidade natural, perda de diversidade em nossos cultivares, desperdício maciço de recursos minerais não renováveis. Ou seja, perda de sustentabilidade.

Alem disso, poucos dão-se conta do destrutivo que são os modernos esquemas de produção de animais em confinamento. Alí se destroi muito mais alimento do que se produz, pois alimentamos gado, porcos, galinhas e outros com alimento subtraído ao consumo humano. Se apenas a China com seu 1,2 bilhão de habitantes conseguir passar a alimentar-se da maneira que hoje o fazem americanos, alemães ou japoneses, estaria logo programado o colapso da alimentação humana em termos globais.

Em essência, o que aconteceu nestas últimas décadas e que passou a chamar-se de modernização da agricultura é que indústria e comércio conseguiram açambarcar para sí toda aquela parte da produção, manipulação e distribuição de alimentos que lhe garante negócio certo, deixando ao agricultor os riscos de más colheitas por questões climáticas e o risco de perdas financeiras pelo aumento crescente dos custos dos insumos e baixa constante nos preços que consegue cobrar por seus produtos.

Portanto, não é com apenas retoques no sistema existente que vamos garantir futuro para nossos filhos, netos e descendentes remotos. Temos que repensar o sistema todo e reformá-lo, passo a passo, para que volte a ser sustentável. Isto não significa retorno aos métodos primitivos, de trabalho manual, duro, do camponês de cem anos atrás. Nossos atuais conhecimentos científicos e novos avanços técnicos nos permitem fazer muito melhor e a vida no campo pode hoje ser muito mais sadia e confortável que a vida nas modernas megalópoles.

O capítulo que acrescento a este livro, "Colheitas e pragas, a resposta estará nos venenos?" traz também conhecimentos fundamentais para a fitossanidade e que ainda escapam ao conhecimento de muitos agrônomos. Estes conhecimentos, incluindo a teoria da Trofobiose, de Chaboussou, estão sendo bloqueados por interesses transnacionais. Espero, com isso, contribuir significativamente para revolução necessária, dando aos jovens idealistas o instrumento intelectual necessário para a continuação da luta para a qual eu, agora velho, já não tenho força física. Enquanto durar o intelecto, estarei com eles.

 => Para quem quiser se informar sobre a epopéia da luta dos agrônomos brasileiros na questão dos venenos agrícolas recomendamos meu capítulo na parte introdutória do livro "Steering Business Toward Sustainability", da Universidade das Nações Unidas em Tóquio e editado por Fritjof Capra e Gunter Pauli. ISBN 92-808-0909-1

 

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