SANEAMENTO BÁSICO
Uma Proposta
José Lutzenberger
Ecologia - Do Jardim ao Poder
L&PM Editores Ltda. Porto Alegre 1985
Texto recopiado em 1998 por Carla, secretária de Claudia Steiner (Fundação Gaia de Manaus)

Este tipo de purificação de esgotos permite atendimento eficiente e descentralizado. Seu baixo custo permite que as prefeituras de cidades pequenas possam, com meios próprios, resolver seus problemas sanitários.

Quanto à proposta para projeto de saneamento básico em estudo, quero esclarecer o que se segue:

  1. Estudo geológico, permeabilidade do solo.

    As lagoas serão lagoas rasas. O nível da água não passará de 20 a 30 cm. Os diques terão no máximo meio metro de altura e poderão ser feitos à mão, por taipeiros de arroz ou com máquina leve e os equipamentos simples hoje usados para fazer mecanicamente as taipas nas fazendas de arroz. As lagoas serão, portanto, construídas exatamente como se constrói uma lavoura de arroz. Os diques serão meandrantes, ajustando-se às curvas de nível. Entre os diques requeridos para a manutenção do nível da água poderão, em alguns casos, conforme a declividade do terreno e a largura das lagoas resultantes, aparecer diques adicionais, cuja finalidade será o manejo do fluxo.

    O desenho dos diques poderá ser feito no mapa, baseado no levantamento altimétrico, ou diretamente no solo, começando-se pela parte mais baixa e usando-se a própria água para desenhar os contornos dos diques sucessivos, até chegar à parte mais alta. Exatamente como se faz em boas lavouras de arroz.

    Os contornos laterais das lagoas também serão meandrantes, isto levando em conta o paisagismo. Um dos alvos principais do projeto é o respeito à paisagem existente. O todo terá valor não somente funcional, mas também estético. Serão respeitados os capões e outros complexos florísticos existentes e haverá caminhos que, em alguns casos, poderão estar em cima dos diques.

    Quanto à permeabilidade e natureza do terreno, basta olhar o corte do canal de retificação do arroio que hoje recebe o esgoto bruto e que passará a receber o esgoto biologicamente tratado. Solo e subsolo são argilo-arenosos, ideais para o estabelecimento de açudes. Trata-se de uma formação sedimentar de várzea, típica desta bacia fluvial.

    Entretanto, mesmo que o solo fosse arenoso e altamente permeável, isto não impediria a formação de lagoas. Lavouras de arroz se fazem tanto em solos argilosos como arenosos. Da mesma maneira, lagoas de purificação botânica de esgotos podem ser feitas em qualquer tipo de solo. Em terrenos muito permeáveis haveria, na fase inicial de maturação do sistema, uma situação em que não existiria efluente final. Uma vez que, no caso em questão, o esgoto é puramente doméstico, sem efluentes industriais (metais pesados, substâncias tóxicas), não há objeções ecológicas a uma filtração. Colônias de Tubifex** que tivemos oportunidade de constatar junto à entrada dos efluentes brutos atuais no leito do arroio atestam a inocuidade biológica do esgoto. O solo, tanto arenoso como argiloso, caso este último ainda tivesse certa permeabilidade, seria também um leito de purificação biológica, através das comunidades bacterianas que ali se estabelecem. À medida que a lagoa amadurece biologicamente, ela se impermeabiliza de modo automático, pela formação de complexos húmicos e turfas.

    Na região costeira do Rio Grande do Sul, especialmente na grande restinga que separa a Lagoa dos Patos do mar, pode-se observar muito bem a evolução das pequenas lagoas que se formam em solo de areia pura. Inicialmente são temporárias, devido às perdas pela infiltração, mas, à medida que elas se tornam mais eutróficas, tornam-se também sempre mais permanentes. Mas, como dissemos acima, para o local em questão esta é uma consideração teórica, pois lá o solo é rico em argilas de origem granítica.

    Uma vez que os trabalhos de estabelecimento das lagoas de purificação por plantas aquáticas não ultrapassam a complexidade dos trabalhos de estabelecimento de uma lavoura de arroz, um levantamento geológico se torna tão desnecessário como nesta. Também, por consideração meramente teórica, gostaria de lembrar os maravilhosos esquemas de terraços escalonados que os povos asiáticos fazem quando suas lavouras de arroz se estendem a terrenos acidentados. Estes trabalhos são feitos sem levantamento geológico, à mão, e em diálogo intensivo com o terreno. É o que nós propomos em nosso projeto, um diálogo intensivo com as condições locais de topografia, de solo, de complexos florísticos, de estética paisagística.

    A alternativa proposta, uma lagoa anaeróbia, seguida de uma facultativa de capacidade igual, seria certamente muito mais cara e esteticamente indesejável, uma vez que a área em questão é também área verde e reserva ecológica. Sua maior profundidade, diques mais elevados e mais compactados, possivelmente margens de concreto, seu desenho geométrico regular, exigiriam terraplenagem intensiva e cara. Alguns dos complexos arbustivos e arbóreos mais interessantes teriam que ser demolidos, quando em nossa proposta eles seriam emoldurados pelos lagos.

  2. A questão da produção e destino da massa verde.

    Lagoas de purificação botânica de esgotos, como nós, por razões de simplicidade de nomenclatura, preferimos chamar as lagoas de purificação biológica com plantas aquáticas, podem ser de três tipos funcionalmente diferentes:

    • As lagoas de jacintho d'água (Eichhornia crassipes), do tipo que foi popularizado nos Estados Unidos pela NASA e que estão sendo propostas por alguns investigadores e técnicos brasileiros.

      Neste caso temos lagoas rasas com uma planta aquática flutuante de excepcional capacidade fotossintética, de grande voracidade na absorção de nutrientes minerais e mesmo de substâncias orgânicas até macromoleculares. A produção de biomassa é, naturalmente, excepcional. Exige, portanto, colheita e manejo sistemático. São vários e muito interessantes os usos que se pode dar a esta biomassa. Como não pretendemos fazer este tipo de lagoa, não vamos entrar aqui em detalhe quanto a estes usos.

    • Lagoas de purificação pelas raízes de plantas aquáticas. São lagoas igualmente rasas, de solo permeável e frouxo, às vezes leitos de gravetos. A purificação biológica se faz no âmbito das raízes das macrófitas. Este tipo de lagoa está sendo proposto e começa a se popularizar na Alemanha. Elas foram inicialmente concebidas e pesquisadas pela professora Kaethe Seidel. Seu grande defensor, hoje, é o professor Kikuth, da Universidade de Kassel, em Witzenhausen. Nestas lagoas pode ou não haver colheita de biomassa. Elas são ecologicamente muito interessantes e trabalham bem até nos invernos frios da Europa.

    • O terceiro tipo de lagoa imita diretamente a Natureza. Trabalha-se com banhados naturais ou se estabelecem complexos florísticos palustres que se assemelham a banhados naturais. Estes esquemas são, funcionalmente, ecologicamente e esteticamente os mais interessantes. Eles não trabalham com monoculturas de plantas aquáticas. As comunidades florísticas são complexas, contendo tanto plantas fixas como flutuantes. À medida que elas amadurecem, surge uma certa estratificação na localização das diferentes espécies. Cada espécie tem exigências diferentes quanto à concentração de nutrientes, condição mais ou menos aeróbia ou anaeróbia da água ou do solo. Em sua fase de equilíbrio final, elas se constituem em belíssimos jardins aquáticos e grande atrativo para a fauna palustre.

    Também neste tipo de lagoa de purificação botânica pode ou não haver colheita de biomassa. Plantas flutuantes, como Eichhornia, Pistia, Limnobium, Salvinia, semiflutuantes como Hetheranthera ou Eichhornia azurea e Hydrocotyle, ou fixas como Pontederia, Sagittaria, Echinodorus e outras, ou mesmo plantas submersas como Utricularia, Ceratophyllum, Elodea e outras - todas elas poderão ser colhidas ou não. Serão colhidas se houver interesse no aproveitamento da biomassa. Nada obriga a uma colheita da biomassa produzida, como não há colheita nos banhados naturais, além da fração de biomassa consumida por herbívoros aquáticos, quando os houver. Não havendo colheita, a matéria orgânica é parcialmente decomposta no fundo, forma complexos húmicos e turfa. Parte dos nutrientes minerais solúveis é fixada por quelatização no completo húmico. A formação de turfa, naturalmente, significa uma elevação gradual do fundo. Mas este processo é muito lento, leva séculos para chegar a meio palmo. Pode, portanto, ser ignorado num esquema prático.

    Para o caso em estudo, a nossa proposta prevê este último tipo de lagoa. Ele é fácil de instalar, barato e exige um mínimo de manutenção.

    Existe no município gaúcho de Pelotas uma lagoa deste tipo, tratando os esgotos do bairro Fragata. Apesar de instalada sem nenhum cuidado especial (o Serviço Autônomo de Água e Esgoto nunca levou a cabo todas as nossas sugestões) e de não receber praticamente nenhum trabalho de manutenção durante os primeiros anos, e apesar de receber em sua parte final o chorume de um velho lixão abandonado, com filtração para dentro da lagoa, este esquema funciona muito bem, sem problemas. A Prefeitura de Pelotas pretende agora fazer um lago muito maior. Na mesma cidade foi instalado, com assessoria nossa, na Fábrica CEVAL, antes Kasper (fabricação de óleo de soja), um esquema semelhante, que já vem funcionando há mais de seis anos, a total contento da fábrica e do Departamento de meio Ambiente da Secretaria da Saúde.

    Em Torres, no Parque da Guarita***, funciona ainda, apesar de praticamente esquecido pelos seus administradores, um laguinho, integrado no paisagismo do Parque, que purifica o esgoto e a água de lavagem da cozinha do restaurante, sem problemas. Este é um lago de plantas aquáticas flutuantes, predominantemente uma espécie gigante de Salvínia, nativa da região. Tem mais de oito anos de funcionamento. Os turistas que namoram sobre a pontezinha romântica que o atravessa nem se dão conta de sua função. Ele está precedido de uma bem dimensionada fossa séptica.

    Este último lago, assim como o da fábrica CEVAL, quase nunca tem efluente final. A evapotranspiração é maior ou igual ao fluxo de entrada. Só em épocas de muitas chuvas existe efluente final.

    Na Fábrica SAMRIG, em Esteio, existe uma instalação piloto do tipo (a) que também já funciona há quase três anos. Tanto neste como nos outros esquemas mencionados, a diminuição de Demanda Biológica de Oxigênio (DBO) tem sido sempre superior a 90%. O laguinho da SAMRIG usa Hetheranthera em substituição à Eichhornia crassipes. Esta última é uma planta tropical que foi introduzida aqui no sul. Ela não trabalha bem em temperaturas abaixo de 20oC e paralisa completamente abaixo de 10oC. A Hetheranthera é uma de nossas plantas aquáticas nativas da região; ela é subtropical, funciona bem até em temperaturas próximas de 0oC. A insistência na Baronesa, Jacintho ou Eichhornia crássipes se deve apenas ao instinto de imitação de muitos técnicos, que só se atêm à literatura e não conseguem dialogar com a Natureza que os circunda. Na instalação piloto que temos na SAMRIG vem sendo observada há anos a diminuição de DBO e são estudados os demais problemas que podem surgir.

  3. Provável proliferação de mosquitos

    Na fase inicial de maturação de uma lagoa pode, efetivamente, haver proliferação de mosquitos durante os meses de verão, se não forem tomadas medidas de controle. O controle, entretanto, é muito fácil e pode ser feito com medidas não agressivas e substâncias não tóxicas. Este controle faz parte dos trabalhos de acompanhamento da fase de maturação dos lagos.

    À medida que o lago de purificação botânica amadurece e entra em sua fase de clímax, forma-se na parte inicial um cascão de lodo coberto de plantas palustres rasteiras. Esta capa evita a proliferação de mosquitos. As larvas só conseguem respirar onde a superfície for limpa. Mais adiante, onde a carga orgânica está mais estabilizada, instala-se uma outra forma de capa, esta verde, constituída por plantas flutuantes minúsculas, Lemna e Spiridella, que também evita a desova e respiração do mosquito. À medida que a carga orgânica se estabiliza, é absorvida e se mineraliza, diminui também a própria desova. A larva de mosquito só pode viver onde ela encontra alimento, bactérias de putrefação. Avançando desde o outro extremo e chegando até este ponto, vêm os peixinhos que se alimentam de larvas de mosquito, os "barrigudinhos" ou Guara-guara, uma espécie vivípara (Phallophychus) que, em épocas de enfoques mais ecológicos e menos tecnocráticos, eram usados pelos esquemas oficiais de combate à malária.

    Assim como os esquemas convencionais, com seus estágios primários, secundários e terciários, necessitam de uma equipe de conservação e operação, é claro que também um esquema biológico como o acima exposto necessita de uma equipe permanente. Mas a equipe pode ser bem menor e o trabalho é bem mais interessante.

    Espero que este tipo de purificação de esgotos faça escola, especialmente em bairros de grandes cidades e em cidades pequenas, permitindo assim atendimento eficiente e descentralizado no tratamento de esgotos, que hoje é quase inexistente no Brasil e dando trabalho interessante e realizador a muitos jovens sanitaristas, biólogos, engenheiros e outros profissionais. O baixo custo destes esquemas permite que as prefeituras de cidades pequenas, hoje dependentes de verbas federais, possam com seus próprios meios resolver seus problemas sanitários.

     

    * - Extrato de um trabalho que foi redigido em resposta a técnicos de departamento de águas e esgotos de uma capital brasileira, que haviam solicitado esclarecimentos sobre projeto específico de Lutzenberger. As referências diretas a este projeto foram cortadas (Nota do Editor).

    ** - Verme aquático que prolifera em águas com alta carga orgânica e que rapidamente desaparece onde há poluição química. Lutz, em seu trabalho, sempre dialoga com a natureza. Encara certos organismos como indicadores mais eloqüentes do que muita análise (Nota do Editor)

    *** - Entre outros trabalhos, Lutz executou obras de paisagismo em vários parques e jardins, como empreiteiro ou como consultor. Desenvolveu estilo próprio. Seus parques surgem não de projeto abstratamente concebido na prancheta, mas novamente do diálogo com o terreno e com os complexos florísticos existentes, harmonizando preservação, ecologia e estética. (Nota do Editor).